Leonel Camasão

A ideia de Tarifa Zero nos transportes tem ganhado fôlego no contexto pós-pandemia. Dez anos depois das manifestações de junho de 2013, o país saltou de 10 para mais de 70 cidades que deixaram de cobrar tarifas do usuário final. Somente nas 24 horas que antecedem a produção deste texto, jornais locais noticiaram a adesão ao Tarifa Zero em mais quatro cidades. A Prefeita de Ituiutaba (MG), cidade com mais de 100 mil habitantes, lançou o Programa para início em 10 de julho; a Câmara da cidade de Gramado (RS), de 35 mil habitantes, aprovou a medida ontem; Jales (SP) também anunciou a rescisão do contrato com a atual empresa de ônibus e a contratação de uma nova operadora, já nos moldes do Tarifa Zero. E nesta manhã, a Prefeitura de Penha (SC), com 33 mil moradores, tornou pública a medida em uma rede social.

Mas, o que mudou no Brasil em dez anos para tornar a proposta de Tarifa Zero, antes considerada por economistas, políticos, empresários e setores da imprensa como “impossível” ou “loucura”? Como algo tão rechaçado e considerado “comunista” se tornou vitrine para Prefeituras de todos os partidos e espectros ideológicos?

Importante identificar ao leitor quem se propõe a fazer esse diálogo: iniciei minha militância política no Movimento Passe Livre (MPL), em 2005. Vivenciei e participei da maturação da proposta, inicialmente reivindicando o passe livre estudantil, para sua versão completa: a abolição das tarifas e catracas, assegurando plenamente o direito de ir e vir à população. Em 2012, um ano antes das manifestações de junho, concorri à Prefeitura de Joinville apresentando o Tarifa Zero como principal proposta de governo. Também fui co-autor da primeira contribuição interna ao Congresso do PSOL, defendendo que o partido adotasse o Tarifa Zero como item de sua plataforma política.

Feita esta apresentação, é importante lembrar que a situação de 10 anos atrás era extremamente confortável aos empresários de ônibus. As “máfias” locais do transporte coletivo se retroalimentaram, por décadas, em sistemas sem licitação, oligopolizados, parcialmente garantidos pelos recursos do vale-transporte dos trabalhadores formais e empresas, quando não apoiados por subsídios públicos, com pouca ou nenhuma transparência e total controle das empresas sobre os sistemas. Bilhetagem, contagem de passageiros, quilômetragem, etc, todos os itens da “tarifa técnica” em geral eram e ainda são fornecidos pelos prestadores de serviço, deixando os governos de joelhos na fiscalização. Ambiente bastante propício à corrupção, diga-se de passagem.

Por décadas, empresários de ônibus choramingaram aumentos tarifários alegando operarem no vermelho e estarem à beira da falência. Os principais afetados com os sucessivos aumentos eram justamente as camadas da população mais vulneráveis: pobres, desempregados, trabalhadores informais, jovens, estudantes. Os aumentos afetavam o trabalhador formal nos casos em que os filhos necessitavam de ônibus para estudar, mas parte dessa perda foi compensada nos anos Lula-Dilma com os aumentos reais de salário. Ainda assim, mesmo indiretamente, havia um aumento do custo familiar, ou ainda, a substituição do ônibus por bicicletas ou  em casos mais extremos, o aumento da evasão escolar.

O que ocorre nesta segunda década do século XXI? As empresas de ônibus estão, de fato, à beira da falência pela primeira vez. A desrregulação total do transporte individual, somada à ascensão dos transportes por aplicativos/vans/motoboys, somada aos efeitos da pandemia, dinamitou o caixa das operadoras de ônibus, levando muitas a fechar as portas ou pedir recuperação judicial. O cenário confortável de sempre, com garantia de ganhos, ausência de concorrência, licitações espúrias e margem para corrupção, sonegação, etc, foi substituído pela ameaça real do colapso econômico das empresas. Tudo isso num contexto em que o emprego formal despencou desde o golpe contra Dilma (e com ele, os recursos do vale transporte).

Some-se ainda o aumento generalizado da pobreza, miséria, e da fome durante o governo Bolsonaro, para termos o cenário econômico ideal para que as classes dominantes passassem a considerar a “loucura” do Tarifa Zero como uma forma de sobreviver ao avanço do próprio capitalismo em escala mundial, uma vez que as empresas locais hoje tem como principal concorrentes uma multinacional (Uber).

Devemos desconfiar? Com certeza. Mas não é difícil deduzir que, entre fechar as portas e mudar o sistema de transportes, os empresários ficarão com a segunda opção. Afinal de contas, a Tarifa Zero para o usuário é também risco zero para o empresário. Quem não gostaria de investir em um sistema onde o governo vai bancar 100% das despesas? Alguns setores mais sectários podem considerar a proposta “reformista” ou “conciliatória”, ignorando os ganhos econômicos, ambientais, de segurança no trânsito, de acesso à cidade, cultura e lazer que a medida impõe à sociedade. Mas isso não é motivo para recuarmos ou deixarmos de aplicar a maior política pública de transporte da história do país, garantindo ganhos concretos e transversais para os de baixo.

Precisamos estar vigilantes em relação à corrupção e desvio de recursos? Com certeza. Mas o crescimento da Tarifa Zero representa o avanço de uma reforma de caráter anticapitalista e anti-monopolista profundos, com impactos que muitas vezes não somos capazes de visualizar no agora. Portanto, esse é o melhor momento para avançarmos na consolidação da Tarifa Zero como política pública. Nosso papel é fomentar o debate e pressionar pela aprovação da PEC 25, institucionalizando a medida para todo o país e garantindo efetivamente o direito universal de ir e vir para todas as pessoas.